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Trechos do Livro

A Democracia Renato Janine Ribeiro (Trechos do livro)

O jurista Fabio Konder Comparatoargumenta, por isso, que o papel do juiz não é o de um despachante que assina a ordem de desocupação — mas o de alguém que, lendo a legislação de maneira sistêmica e não como um artigo isolado, deveanalisar se a propriedade está respeitando a Constituição.Aqui não cabe aprofundar essa discussão: basta lembrar que nosso judiciário está mais equipado para dar razão ao titular de direitos civis do que ao de direitos sociais. Ninguém defende que qualquer um invada o que quiser. Mas o judiciário, a imprensa e parte da opinião pública reconhecem melhor odireito do proprietário do que os direitos sociais. A limitação constitucional que esses direitos impõem à propriedade não foi regulamentada em lei. A imprensa não toma conhecimento dela. Nossa democracia padece do fato de que aqui os direitos sociais são incipientes.Ou os direitos políticos. São fortes, no Brasil? Hoje temos ampla liberdade de organização partidária e de expressão. Mas a rádio e a TV pertencem a grupos empresariais que as abrem pouco aocontraditório, ao diálogo. Nossa discussão política é fraca.

A manipulação do eleitorado, pelo poder deEstado e do capital, é frequente. Os poderes constitucionais e o quarto poder, a imprensa, entendemmelhor os direitos proprietários do que os outros. Daí que a prioridade de nossa democratização estejanos direitos políticos e nos sociais, em que mais somos deficitários.

A quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, gerou enormes crises sociais, que os governos não souberam — ou não quiseram - enfrentar. Só com a eleição de Franklin Roosevelt para a Presidência dos Estados Unidos, em 1932, começaram políticas sociais. Com o New Deal, ou novo pacto, o Estado foi tratar do problema social. Mas, ao longo dos anos 1930, a Corte Suprema do país fulminou várias das novas leis trabalhistas, alegando que violavam a liberdade de contratar. Assim, um direito proprietário assumia dignidade constitucional, e toda tentativa de regulamentar as relações de trabalho era acusada de infringir esse direito superior. A questão apenas se resolveu sob pressão política, quando Roosevelt ameaçou aumentar o número de juízes da Corte a fim de reverter suas decisões. O exemplo é esclarecedor. Quando pela primeira vez na história moderna se inclui na agenda democrática a questão social, o judiciário não entende nem aceita a novidades.

A novidade, difícil de aceitar pela Corte Suprema dosEstados Unidos ou por nosso pensamento conservador, é que a política se espraie para o campo social — que passe das instituições políticas para as relações de trabalho e propriedade, para o modo que as pessoas efetivamente vivem. Mas cabe aqui sustentar o contrário dessa concepção. Se quando nasce a democracia moderna aúnica experiência democrática conhecida era a grega, e se ela não separava direitos políticos e sociais, a novidade moderna é a separação. Muda-se assim o eixo do que precisa ser explicado. Usualmente, explicamos como e por que, na democracia, o teor social se acrescentou ao político - no século XIX como reivindicação, no século XX como realização (ao menos nos países mais desenvolvidos). Ora, o que precisamos explicar éexatamente o contrário: como os primeiros democratas modernos conseguiram extirpar, da democracia, o seu teor social. Mais que isso, precisamos explicar por que achamos óbvio esse recorte, por que não nos espantamos com ele. Insisto: não se trata mais de explicar como os séculos XIX e XX tiveram êxito em unir o social ao político, mas sim de que maneira os séculos XVIII e XIX lograram afastá-los

Como o Ocidente moderno apartou o político do social? Cabe propor que o social é, em seu cerne, da ordem do desejo. Os gregos tinham razão quando entendiam - ou temiam — que os pobres no poder tirassem tudo dos ricos. Essa convicção ainda reponta em nosso tempo. Vejamos duas ilustrações. A primeira é o medo que a direita brasileira difunde de que os pobres tirem as terras ou casas não só dos ricos, mas de todos os que as têm. Consta que, nas eleições de 1989, algumas pessoas teriam ido a casas de classe média, fingindo fazer um inquérito para saber quantas famílias sem teto poderiam dividir o espaço com o proprietário. Como isso de fato aconteceu nos países comunistas, esse temor parecia ter cabimento.

Aqui, dois esclarecimentos. Primeiro, ao falar do assalto de um menino miserável a um rico por um tênis, o que se quis foi captar-lhe a significação. Mas não cabe associar a miséria ao crime, o que — erradamente — até uma parte da esquerda faz, quando enfatiza que o desemprego aumenta seu índice. Os piores crimes dizem respeito à corrupção, ao colarinho branco, a uma destruição do tecido social promovida discreta e eficazmente. Os crimes dos pobres têm maior visibilidade e são bem explorados pela mídia. Mas a corrupção, o conúbio entre a administração pública e a riqueza privada, causa maior dano à sociedade. Gera mortes, ainda que os criminosos não apertem diretamente o gatilho. Segundo, com esta argumentação quer-se negar uma leitura da democracia — e da política - que privilegia o racional, a necessidade, as carências básicas sobre o desejo. Não se cogita negar a importância das necessidades fundamentais. Mas algo falta nelas. E a dimensão do afeto, da paixão, do sentimento; em suma, do desejo. Vejamos por que a política moderna ocidental cindiu o político do social - isto é, do desejo.

Somos incapazes de saber o que é a verdade, e por isso é preferível resolver os conflitos pelo voto a submetê-los a uma decisão científica, religiosa ou o que seja. (Eis o problema do marxismo com a democracia. O marxismo se apresenta como ciência: as posições que divergem dele — pró-capitalistas, ou mesmo socialistas, mas não marxistas - são vistas como erradas. Daí vem adificuldade do marxismo, no poder, em aceitar a divergência: isso é tão difícil para ele quanto seria, para um médico, tolerar um curandeiro no seu hospital.) O interessante nessa posição é que, mesmo sem acreditar que a democracia seja um valor sempre positivo, ela entende que o procedimento democrático produz resultados positivos. Constrói relações sociais de cooperação. Reduz, justamente por aceitar o princípio dos conflitos, o teor de conflito na sociedade. Mas seu ponto de partida é que a democracia não é um valor, mas um procedimento.

Em vários países se coibia a discussão política fora do momento eleitoral. Duasgrandes esferas assim ficaram — e ainda estão — fora do espaço democratizado, remetendo ambas aomundo privado.A primeira é a da vida privada ou íntima. As relações pessoais não foram democratizadas. O amor se manteve carregado de possessividade, de autoritarismo, de machismo.Uma das características da década de 1970 foi revisitar figuras de passado democrático ou progressista e mostrar como elas foram falsas ou autoritárias em suas relações amorosas. Alguns grandes presidentes dos Estados Unidos, como Franklin Roosevelt, Eisenhower e Kennedy, tinham amantes.Marx e muitos militantes comunistas não tratavam a mulher como igual. O argumento, de um lado e deoutro, era que isso não dizia respeito ao mundo da política. Nos anos 1970 se rompe com isso, dizendo-se que a vida íntima também é política. Vivemos oempenho de democratizá-la e avançamos muito rumo à igualdade entre os sexos. Como o amor, o sexo eos afetos em geral se referem ao inconsciente, ou ao que Freud chamou de id, essas são questõesobscuras, de difícil trato, o que é agravado por terem passado séculos sem serem expostas à luz. Malcomeçamos a entender que merecem vir a público, e esse é um dos maiores desafios de nosso tempo